sábado, 17 de julho de 2010

Thoughts

Vejam bem. Irmãos mesmo, gémeos de verdade. Amigos mais dados não houve, na rua toda e em todas as ruas. Mas vá lá uma pessoa entender a danada da vida! Crescem e cada um com sua ideia, seu modo de pensar. Os doutores devem ter explicação, eu não sei. Filhos do mesmo pai, de igualíssima mãe, criados na sua casa, juntos na escola desde a primeira. E a dada altura, bumba, um alistando-se na Polícia, o outro começando a deitar os garfos. Mas amigos. No medo de encontrar o mano sacando carteiras, o guarda pede transferência para o rabo do mundo, lá para Algés. O irmão, que não senhor: fica tu, vou eu fanar longe. Porque torna, porque deixa, o agente pedindo pelas alminhas, desgraçado, meu irmão, muda de vida. Estava difícil. Então o polícia, para evitar vergonhas e mal-entendidos, vai à esquadra e desalista-se, entrega a farda. Gesto bonito. Mas quando soube o mano gatuno chorava de beber as lágrimas. Curou-se aí. E mais: havia concurso, apresenta-se na Polícia, lá não sabiam, fica apurado, fardinha e tudo. O outro contente de desatar aos saltos, torna à esquadra a dar o dito por não dito, estou de volta. Mas não. Quem sai, sai, passe muito bem. Andou o homem meses seguidos paisano e aos paus - olha um dia chateou-se e começou a gamar. Voltaram ao mesmo!
Agora digam honestamente: posso eu contar este triste enredo? Não posso. Nem faltaria menino a acusar-me de exagero ou aldrabice. E muito menos devo falar de outro acontecimento, esse, upa, upa, fiando ainda mais fino. Só para fazerem uma ideia: o caso do Gaita de Ouro.
Verdade: o homem apareceu de repente, sozinho, alugou a casa do Vitório Rapas, que abalara para Sacavém, e deu em espairecer na tasca. A tasca não era o Café-Bar Frequência, esse espavento, mas tasca mesmo: com pipas de vinho, mesas corridas, bancos de pau. O sujeito chegava e, com licença, sentava-se. O primeiro luxo descoberto foi a ourivesaria na boca: quatro dentes de ouro, quatro dentes no mínimo, houve quem contasse seis num dia em que se riu. Mas trazia um mistério: mesmo sentado o sujeito puxava e repuxava o casaco, cuidando em tapar ninguém entendia o quê. Lá tapar ia tapando, mas fosse o que fosse aguentava firme, virado para o tecto. Esquisito. Alguém topou e veio estranhar aos ouvidos gerais, toca a examinar, era exacto. Coisa curiosa se emproava, logo naquele sítio. Espalharam-se os segredinhos e risadas, c'os diabos, estaria o valente nesse estado mesmo sem senhora à vista? Demasiado. No outro dia o homem entra e todos os olhos  vão nesse caminho, a saber. Trazia samarra. Mas senta-se e bumba, vinha no mesmo preparo. Raios parta. A única explicação deu-a o Elísio Silva Bonito, dono da tasca, por sinal avô do João Bonito, o bombeiro. Disse ele: «Aquilo foi coisa de fractura puseram-lhe no gesso.» Ninguém se convenceu. E então uma noite em que o abonado, papo cheio de cerveja, saiu a aliviar-se ao pé da nespereira, vai um magote em pezinhos de lã, esconde-se à coca atrás da pocilga. Voltam como doidos, atropelando-se: «É de ouro! O gajo tem gaita em ouro!»
Fantástico! E nem devia pôr-se em dúvida, testemunhas eram seis, uma das quais conhecedora, António Vaizinho, empregado de joalharia , que adiantou avaliação: «Dezoito quilates!»
O mau foi pastar por aí gado de fora, malandragem. Levaram a noite empifando o homem, guiaram-no a casa com uma cardina de dobrar as pernas. As pernas sim, o resto em sentido. Está à vista o triste fim: miseravelmente, roubaram-no, fugiram-lhe com a gaita, que era de desatarrachar.
Voltou à tasca uns dias mais tarde, enfiado, desgostoso de meter pena, mas caramba!, lá estava outra vez de mastro altivo vencendo as cautelas do casaco. Só que esse, soube-se mais tarde, já era de plástico.
Mário Zambujal em Histórias do fim da rua


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