domingo, 29 de agosto de 2010

Thoughts

Alienado tempo, culturalmente
Conversa com um espanhol:
... y más aún!
- Toy story?
- No, Pablo Neruda...

A pensar num fundo

  
E agora algo diferente:


Ritual de minhas pernas

Muito tempo permaneci a olhar as minhas longas pernas
com ternura infinita e curiosa, com a minha paixão habitual,
como se tivessem sido as pernas de uma mulher divina
profundamente sumida no abismo do meu tórax:
e é que, na verdade, quando o tempo, o tempo passa,
sobre a terra, sobre o tecto, sobre minha cabeça impura,
e passa, o tempo passa, e em minha cama não sinto de noite que 
uma mulher respira, a dormir, nua e a meu lado,
então, estranhas, escuras coisas tomam o lugar da ausente,
viciosos, melancólicos pensamentos
espalham pesadas possibilidades no meu quarto,
e assim, pois, olho minhas pernas como se pertencessem a outro
                                                                                                corpo,
e forte e docemente estivessem coladas às minhas entranhas.
Como caules ou femininas, adoráveis coisas,
dos joelhos elas sobem, cilíndricas e espessas,
com perturbado e compacto material de existência:
como brutais, grossos braços de uma deusa,
como árvores monstruosamente vestidas de seres humanos,
como fatais, imensos lábios sedentos e tranquilos,
são ali a melhor parte do meu corpo:
o inteiramente substancial, sem um complicado conteúdo
de sentidos ou traqueias ou intestinos ou gânglios:
nada, a não ser o puro, o doce e espesso da minha própria vida,
nada, a não ser a forma e o volume existindo,
guardando a vida, contundo, de um modo completo.

As pessoas atravessam o mundo na actualidade
quase sem se lembrar que possuem um corpo e nele a vida,
e há medo, há medo no mundo das palavras que designam o
                                                                                                corpo,
e fala-se favoravelmente da roupa,
de calças pode falar-se, de fatos,
e de roupa interior de mulher (de meias e ligas «de senhora»),
como se pelas ruas andassem as peças e os fatos completamente 
                                                                                                         vazios
e um escuro e obsceno guarda-fatos ocupasse o mundo.

Têm existência os fatos, cor, forma, desígnio,
e um profundo lugar em nossos mitos, demasiado lugar,
demasiados móveis e demasiados quartos há no mundo,
e o meu corpo vive entre e sob tantas coisas abatido,
com um pensamento fixo de escravidão e de cadeias.

Bem meus joelhos, como nós,
particulares, funcionários, evidentes,
separam as metades de minhas pernas em forma seca:
e na realidade dois mundos diferentes, dois sexos diferentes,
não são tão diferentes como as duas metades de minhas pernas.

Do joelho até ao pé uma forma dura,
mineral, friamente útil aparece,
uma criatura de ossos e persistência,
e os tornozelos não são já senão o propósito nu,
a exactidão e o necessário dispostos para sempre.

Sem sensualidade, curtas e duras, masculinas,
são ali as minhas pernas, e dotadas
de grupos musculares como animais complementares,
e ali também uma vida, uma sólida, subtil, aguda vida
sem tremer permanece, aguardando e actuando.

Em meus pés coceguentos,
e duros como o sol e abertos como flores,
e perpétuos, magníficos soldados
na guerra gris do espaço,
tudo termina, a vida termina definitivamente em meus pés,
o estrangeiro e o hostil começa ali,
os nomes do mundo, o fronteiriço e o distante,
o substantivo e o adjectivo que não cabem no meu coração,
com densa e fria constância originam-se ali.

Sempre,
produtos manufacturados, meias, sapatos,
ou simplesmente ar infinito,
haverá entre meus pés e a terra
a demarcar o isolado e o solitário do meu ser,
algo firmemente suposto entre a minha vida e a terra,
algo abertamente invencível e inimigo. 

Pablo Neruda - Residência na terra


As tuas pernas são diferentes,
tens um caminhar anormal.
- Os caminhos que existem,
para mim são anormais.
 

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