Porque no facebook ninguém é fanhoso:
As pessoas que parecem nesta imagem são verdadeiras, embora estejam escondidas pelo ar fictício do facebook. O facebook é o supra sumo do "eu ideal", através de um ataque supremo às aparências - a teoria que existem três formas de nos verem: o "eu real",como somos mesmo; o "eu ideal", como queríamos ser; e o "eu aparente", como os outros no vêem.
E para aumentar o meu ego:
Porque há críticos que funcionam a stereo:
Poeta, santo, agricultor
O poeta que fizesse milagres, o poeta que fosse ao mesmo tempo um santo, um irmão dos pobres e das raízes, de tudo o que sofre, raso como o pó e tocando as estrelas - esse seria o grande, o maior dos poetas. Iria bater o prodigioso golfo, encarando o redemoinho de planetas, de almas e de sóis. A sua visão do universo deslumbraria: atravessariam o seu ser todas as dores, quando despisse, enfim, os trapos terrenos deparando com o próprio Deus.
Porque na planta não somente a planta, nem no homem apenas o homem: esta a emoção, que é eterna. A forma dispersa-se logo, nuvem e pó um momento reunidos. Numa simples árvore há um mistério tão profundo, como o do bravio universo. O que é necessário é encontrá-lo, ir aos seres e às coisas, e arrancar-lhes as roupagens ilusórias. Para bem sentir, é preciso igualarmo-nos: para compreender uma estrela, topar nas estrelas, e para entender um calhau, descer até aos calhaus.
Foi isto que Junqueiro viu: dos seus olhos caíram as escamas. Sentiu então que para tocar na raiz do universo, era preciso ser um santo; subir em inteligência, baixar em humildade; ter no cérebro jorros de luz e na alma torrentes de emoção. Tudo é aparência - menos a dor.
Verdadeiramente santo, só o que caminhasse despido na existência; o que, humilde e com torrentes de piedade para espargir, com um cérebro capaz de arcar com o universo e um coração sentido todos os sofrimentos, assim atravessasse a Vida.
E foi ao que assistimos: à medida que Junqueiro caminhava para Santo, a sua visão era mais extraordinária, pois que um Santo é apenas um Poeta em acção; não descreve o seu sonho, realiza-o.
Não, para mim, não é Tolstoi que ele busca, é a verdade; não é uma doutrina, é Deus. Já a caminho de ser um enorme poeta, ele encontra-se, naturalmente, logicamente, no caminho de ser também um santo: é que as duas estradas vão afinal unir-se lá ao longe numa só, para quem tem forças de ir até o extremo. O seu destino é identico; ambas vão bater à ígnea profundidade, ao doirado espanto, a alma gigântea, ao prodigioso oceano sem limites - a Deus.
Há meses que Guerra Junqueiro não aparecia no Porto, onde outrora era certo à noite, na Praça, rodeado de esbirros, e discutindo política ou arte com dois ou três amigos mais íntimos. Ei-lo agora de volta, depois de umas febres palustres apanhadas numa das quintas que ele replanta nessa longínqua Barca d'Alva.
Vem curioso. Viram acaso os senhores um Junqueiro adunco e janota, mefistofélico, com ditos em brasa explodindo sobre o último caso e conhecem talvez a lenda da casa de hóspedes célebre da Rua dos Retroseiros, donde em tempos saíram gritos subversivos, panfletos, versos, e onde - consta nos arquivos da polícia - morou o próprio Diabo em pessoa, na intimidade do poeta?... Lembram-se? Depois, noutra fase da vida, viram-no maquiavélico e feroz, com o mesmo perfil em bico de águia sob um chapéu gasto, atacar o velho Padre Eterno?... Pois aí o têm agora de barba negra e inculta, com um ar que vai bem à sua filosofia cristã. Parece um pregador socialista tolstoiano, um Santo. Chega da sua quinta de Barca d'Alva, que ele replanta - um terreno lá para a raia, entre pântanos.
Já pouco a pouco a lenda se forma discutindo-se a nova tebaída, que daqui a anos será visitada, como Vale de Lobos e Seide, ainda que eu não conheça público com tanto desdém pelos seus grandes homens como o nosso. É por isso talvez que eles, ao fim da sua vida, desiludidos, procura, a natureza que não engana nem mente, e que está na própria lama revolvida cria prodígios. As árvores consolam e ensinam e uma larga paisagem doirada e triste, o mar e a montanha dão-nos altas ideias, o desprezo por tudo que na vida é transitório e sem alma - quase ia escrever sem Deus...
Seria um curioso estudo aquele que comparasse Vale de Lobos e Seide e a quinta de Junqueiro; a decoração escolhida por três homens superiores - o fundo desses três grandes retratos.
Seide, num cair de tarde outoniça, lembra a alma de Camilo. As árvores que a ventania torce em gargalhadas, parecem sofrer. São risos ou gritos de dor? A luz, o céu revolto e violáceo, as tintas trágicas e simples, dão-nos a impressão daquela alma dilacerada de céptico e de crente, mistura dolorosa, que só tinha como solução o infortúnio. E ao mesmo tempo a paisagem não perde o carácter minhoto: é ali que se move o brasileiro, o padre, as mulheres que salvam e que perdem - até essa doce figura de Mariana, que acaba abraçada a um cadáver, mas que povoa para sempre um cantinho da nossa alma... Vale de Lobos, se uma vez o avistaram, não emociona de uma forma toda diferente, e não diz bem com a alma gigântea de Herculano?... Quanto a Junqueiro, a sua paisagem querida é indubitavelmente a trasmontana, grave, revolta, grandiosa e sombria como o seu génio.
Camilo não encontrou decerto resignação nas árvores, nem nos montes, porque , para o mestre, em toda a natureza só o homem existia; nem Guerra Junqueiro por ora se isola. Está na luta, com os seus livros, as suas teorias, a sua maneira suprema de discutir e de encarar os problemas.
De forma que a Barca d'Alva não é bem ainda uma tebaída para o poeta. Os senhores vão agora conhecê-lo sob este aspecto novo - agricultor. A Barca é-lhe mais que um refúgio: é (palavras que fazem bater o coração de todos os homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro, como agricultor, tem ainda génio: em pouco tempo conheceu as questões agrícolas, melhor que os lavradores da região, de quem ele diz:
-Plantam vinhas como quem joga na batota - ao acaso!
Descobriu um novo processo para evitar que a enxertia - essa operação cirúrgica, como ele lhe chama - falhe e´sob as suas ordens, trabalham quatrocentos cavadores. Não é raro vê-lo súbito - tempo húmido, perigo para as vides - abalar para a quinta com sacos de sulfato. Adivinha, presente melhor a natureza que os sábios - e cria. Tudo o que toca toma sob as suas mãos um aspecto grandioso, tão certo é que os homens de génio, como diz Carlyle, são sempre superiores.
Procura a terra, ama a terra. E de que maneira paradoxal ele expõe as suas teorias! Nervoso, pequeno, calcando infatigável o lagedo da Praça, a mordiscar a ponta do charuto, que gigânteas formas de sonho não vão surgindo àquela mágica palavras!... A sua fantasia é eminentemente decorativa.
-Sabem - dizia o poeta uma noite - sabem que cismo na forma de transformar toda a agricultura. Acabaram-se os pobres, a fome, os anos tristes! Para o vinho, daqui em diante, não bastarão tonéis como torres, para o pão com arcas como casas. Uma carrada de bois será apenas suficiente para carregar uma abóbora, e um simples cacho de uva dará vinho para dúzias de borrachões.
«Como? Aplicando às árvores, às vides, às plantas enfim, o método De Browne Sequard. O sábio dá um organismo gasto uma vida assombrosa, injectando-lhe com a maior das simplicidades, a vitalidade de coelhos, por exemplo. Imaginem o resultado do sistema na agricultura...
«Um castanheiro dura séculos, tem uma vida estranha. É mais que uma árvore - é uma força. Vive nos montes. As suas raízes alastram-se vorazes, os seus ramos tocam o céu. Calcule que injecto pólen de castanheiro numa vide... Obtenho logo uvas como as da Terra da Promissão. De um pé de melancia tiro um fruto capaz de carregar um carro. Três maçãs metem no fundo uma nau.»
E eis, por uma negra noite de invernia, a natureza transfigurada, pelo poder da fantasia e do sonho. A sua conversa é assim. Flores seriam árvores como parassóis púrpuras abrindo no céu; pinheiros transformar-se-iam em montanhas verdes; monstros ergueriam as suas corolas de veludo abrindo no céu; pinheiros transformar-se-iam em montanhas verdes; monstros ergueriam as suas corolas de veludo, umas negras, raidas outras, sangrentas, e na verdade não passariam de simples, de humildes flores bravias. Uma pétala desabaria com o fragor de penedos e multidões sequiosas viriam dessedentar-se neste fruto colossal: - o morango. Eh, eh, rapazes! Bom dia aquele em que uma camélia branca desfolhando-se juncasse de corpos lácteos os prados verdes e em que eu pudesses armar a minha barraca de campanha no píncaro de um girassol - esse cedro!...
O homem de génio é, como todos os homens, feito da mesma lama, de húmus, mas, por acaso, vão nessa argila lágrimas, águas correntes, detritos de florestas, restos de nuvens e emoção da gigântea natura. Por isso sabem tudo, tudo sentem...
Junqueiro na intimidade é prodigioso génio, de imprevisto, de elevação. Vê os factos mais simples, com um olhar que os engradece. Assombra de pittoresce e de inédito. É pena que as suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços de sonho e de vida, atirados com febre, perdidos pelos cantos, e decerto esquecidos, se não possam juntar porque dariam um dos aspectos mais extraordinários do seu génio. Assim por exemplo, a explicação prodigiosa dos Cristos de madeira - o Cristo dos soldados, o dos ladrões, o dos cavadores, etc., - únicas obras de arte de que ele não se desfez, e a sua filosofia, a maneira superior como que encara o universo e ilumina o desconhecido...
Pois aí o têm de novo no Porto, de barba hirsuta, embrulhado num velho casaco cossado, com um ar iluminado de Santo. Direis que vai pregar às multidões. Demais, já há anos que ele escrevia:
Tolstoi, o meu sapateiro...
E um dia, ao saber Camilo céptico, Camilo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de propósito procurá-lo para lhe pregar Deus?
Era numa dessas tardes de Seide shakesperianas, de que o grande escritor fala nos Serões. A natureza chorava, revolvida, com vozes e infinitas tristezas. O romancista escutava o poeta, mergulhado na dolorosa tinta do crepúsculo, sem um gesto, quieto, absorto, calado, Junqueiro desenrolava teorias, argumentos, explicações: atacava-o, persuadia-o. Por fim, parara exausto, e, ao vê-lo cismar, ósseo, mirrado pelo sofrimento, pensava-o decerto convencido - quando ele, inalterável e frio, lhe disse:
- Pois Junqueiro, você convencia-me, se eu não tivesse ainda no estômago três bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como três voltaires!
Raul Brandão - Sonhos


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